sexta-feira, 23 de setembro de 2016

"Os Miseráveis" do Brasil: desigualdade social não é prioridade do governo


Claire Gatinois
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  • Rivaldo Gomes/Folhapress
De 2003 a 2010, 25 milhões de brasileiros saíram do estado de pobreza. Mas, com a recessão que assola o país, a redução das desigualdades deixou de ser uma prioridade 
Eugênia Oliveira possui a resignação daqueles que a vida nunca poupou, e está feliz porque não há ratos rondando seu barraco de madeira. "Graças a Deus". Eugênia tem 35 anos, seis filhos e em breve sete, vive em um dois cômodos de arquitetura tosca e perigosa em Paraisópolis, uma favela do sul de São Paulo, a megalópole brasileira. Uma cortina grudenta separa a cozinha de cerca de 4m² de um quarto de dormir pouco maior, onde se amontoa a família em meio à sujeira e à umidade, com a televisão ligada na Globo, a emissora mais popular do país. "No inverno a gente congela, no verão a gente cozinha", ela brinca.
Quando sua filha mais nova nasceu com um problema cerebral, Eugênia teve de deixar seu emprego de faxineira e a casa de alvenaria que ela ocupava em outra área da favela, por não poder pagar o aluguel exorbitante (R$ 300) que o proprietário lhe pedia. Ela se mantém com o Bolsa Família, oferecido pelo Estado aos mais miseráveis em troca da escolarização dos filhos, e está esperando por uma pensão para sua filha.
Nessa noite de janeiro, a água da chuva misturada ao esgoto escorre ao longo de uma rua lamacenta. O cheiro de urina se mistura ao do de fritura das cozinhas dos arredores, em meio ao barulho gerado pela proximidade entre as casas. A algumas centenas de metros dali, é possível ver os prédios luxuosos do Morumbi, abrigando apartamentos de milhões de reais, com piscina, varanda e sauna, onde trabalham como empregados domésticos alguns moradores dessa favela.
Com esses contrastes chocantes, prova das vertiginosas desigualdades, Paraisópolis confirma as estatísticas que mencionam uma distorção da distribuição de renda equivalente à do início do século 19 na França ou no Reino Unido, época dos "Miseráveis" de Victor Hugo e dos romances de Charles Dickens, como lembrou no dia 5 de janeiro a revista semanal brasileira "Carta Capital". Segundo a ONG Oxfam, 62 bilionários detêm uma riqueza equivalente à da metade da população mundial, ou seja, 3,6 bilhões de pessoas. Entre eles, há dois brasileiros: o empresário e ex-campeão de tênis Jorge Paulo Lemann e o banqueiro Joseph Safra.No Brasil, os dados não permitem medir as desigualdades de patrimônio, mas só a diferença de renda já dá uma ideia do problema: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o 1% dos mais ricos, em 2014, ganhava em média R$ 14.548 por mês, ante R$ 155,00 no caso dos 10% mais pobres. Quase cem vezes menos. "É bem alarmante", observa Marc Morgan Mila, aluno de Thomas Piketty, que está redigindo uma tese sobre as desigualdades brasileiras na Escola de Economia de Paris.

O temor de um retrocesso

Ele diz que o culpado disso é um sistema de tributação que, em certos sentidos, confere ao Brasil um aspecto de paraíso fiscal. As rendas obtidas dos dividendos das empresas e recebidas por pessoas físicas não são tributadas, a tributação do patrimônio é quase inexistente, a das heranças é leve e o imposto sobre a renda é pouco progressivo, com uma alíquota máxima de 27,5% (contra mais de 40% na França). A maior parte das receitas fiscais vem dos impostos indiretos cobrados do consumo como o ICMS, que ricos e pobres pagam de maneira idêntica e injusta. No final, um milionário paga proporcionalmente 25% a menos do que um trabalhador de classe média.
"Após a abolição da escravatura em 1888, o Brasil não teve uma verdadeira reforma agrária, e assim foram perpetuadas as desigualdades de renda que também são desigualdades de gênero e de raça", comenta André Calixtre, diretor de estudos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em Brasília. Os grandes proprietários fundiários, ex-colonos, brancos, transformaram sua fortuna agrária em patrimônio industrial, financeiro ou imobiliário, enquanto os descendentes de escravos se mantiveram na pobreza. Em 2014, um homem branco ganhava em média R$ 2.393,00, contra R$ 956,00 no caso de uma mulher negra, ressalta Calixtre.
No entanto, o Brasil, ex-astro dentre os países emergentes, no começo dos anos 2000 tomou o caminho do desenvolvimento que primeiramente beneficiou os mais pobres. Com a ajuda do boom do preço das matérias-primas e da política social do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), que ocupou o poder de 2003 a 2010, 25 milhões de brasileiros saíram da pobreza. De 2002 a 2014, o salário mínimo aumentou 77% em termos reais, ou seja, bem mais que a renda média (+40%). Entre 2004 e 2014, o índice de brasileiros que vivem em extrema pobreza, com menos de US$ 1 por dia (R$ 3,93), caiu para um terço, de 9,37% para 3,09%.
"A desigualdade diminuiu, mas não o suficiente", comenta Katia Maia, diretora da Oxfam Brasil. Para ir além, faltava a reforma fiscal que é o que se esperaria de um governo de esquerda. Pragmático, o ex-presidente tomou o cuidado de não assustar o "muro do dinheiro": "O Lula concentrou sua ação em ajudar os mais pobres, sem incomodar os mais ricos", resume Morgan Mila. Essa tática foi colocada em evidência por algumas pessoas desde que ele chegou ao poder em 2003, quando foi pela primeira vez à cúpula econômica de Davos, símbolo do capitalismo, e a seu contraponto, o Fórum Social de Porto Alegre.
Hoje, a recessão, a inflação de dois dígitos e o aumento do desemprego trazem os temores de um retrocesso. Em 2015, o país perdeu 1,5 milhão de empregos e a economia informal vem crescendo. Só que "o melhor programa social é o emprego", acredita Heloísa Oliveira, da fundação Abrinq, que visa proteger as crianças e os adolescentes. "A crise pode agravar a vulnerabilidade dos mais jovens", ela diz preocupada, lembrando que em 2010 19% das mães brasileiras tinham menos de 19 anos e que, no Nordeste, mais de um terço da população tem entre 0 e 18 anos e vive em favelas. Em certos Estados como o Acre, na Amazônia, o mais pobre do país, o coeficiente Gini, que mede as desigualdades, voltou a se agravar em 2015. Oliveira lamenta que não se tenha colocado mais ênfase na educação, pensando no futuro.
Mas não é mais tempo de gastar. A presidente Dilma Rousseff (PT), ameaçada de impeachment, desde 2014 parou de conduzir uma política social seguindo o modelo de seu antecessor, passando a adotar o rigor. Mesmo os sagrados gastos com o Carnaval, que será no início de fevereiro, foram revistos para baixo. Essa austeridade pode se revelar positiva caso Brasília reforme um Estado gastador e pouco eficiente, mas também negativa caso os cortes orçamentários sejam feitos de qualquer jeito e afetem os programas sociais, a ponto de comprometer a ambição do Brasil de fundar uma sociedade mais igualitária.

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Conheça o 'Circuito das Artes de Paraisópolis', em São Paulo13 fotos

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O passeio do 'Circuito das Artes na Comunidade de Paraisópolis' foi idealizado em setembro de 2013. Um dos destaques do roteiro é o Castelinho de ParaisópolisImagem: Oswaldo Corneti/ Fotos Públicas



domingo, 28 de fevereiro de 2016

Renda per capita média do brasileiro atinge R$ 1.113 em 2015

A renda per capita média do brasileiro em 2015 chegou a R$ 1.113, variando entre os R$ 2.252 do Distrito Federal - o maior valor em todo o país - e os R$ 509 do Maranhão, o de menor peso. Em fevereiro de 2014, a renda era de R$ 1.052. As estimativas de rendimento nominal domiciliar per capita em 2015, para as 27 unidades da Federação, são decorrentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua e foram divulgadas hoje (26) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

As informações também estão sendo encaminhadas ao Tribunal de Contas da União e servirão de base para o rateio do Fundo de Participação dos Estados (FPE), conforme definido pela Lei Complementar nº 143, de julho de 2013. Pelos dados divulgados, se destacam pelo lado positivo, além do Distrito Federal, seis estados com renda per capita acima da média nacional de R$ 1.113. 

Pela ordem, aparecem São Paulo, a segunda maior renda per capita do país (R$ 1.482; Rio Grande do Sul (R$ 1.435); Santa Catarina (R$ 1.368); Rio de Janeiro (R$ 1.285); Paraná (R$ 1.241); e a Bahia (R$ 1.128). Além do Maranhão, com R$ 509, também aparecem com rendimento médio per capita bem abaixo da média nacional, Pernambuco (R$ 598); Pará (R$ 672) e Ceará (R$ 680). 

O que é 

A Pnad Contínua é uma pesquisa domiciliar que, a cada trimestre, levanta informações socioeconômicas em mais de 200 mil domicílios, distribuídos em cerca de 3.500 municípios. Segundo o IBGE, os rendimentos domiciliares são resultado da soma dos rendimentos do trabalho e de outras fontes, recebidos por cada morador no mês de referência da entrevista, considerando todos os residentes em um domicílio. 

Ao divulgar o rendimento domiciliar, o IBGE atende ao que dispõe a lei complementar 143/2013, que estabelece novos critérios de rateio do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE) e os compromissos assumidos quanto à definição dos valores a serem repassados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) aos municípios. 

Os valores que estão sendo informados ao TCU foram obtidos a partir dos rendimentos brutos do trabalho e de outras fontes, recebidos no mês de referência da entrevista, tomando o acumulado das primeiras visitas do 1º, 2º, 3º e 4º trimestres da Pnad Contínua que compõem o ano de 2015. No cálculo, são analisados todos os rendimentos. Os moradores são considerados no cálculo, inclusive os classificados como pensionistas, empregados domésticos e parentes dos empregados domésticos.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

"Aumento da desigualdade é sintoma de que algo está errado"

Um grupo de 62 bilionários, incluindo dois brasileiros, acumulou riqueza equivalente ao patrimônio de metade da população mundial, ou seja, 3,6 bilhões de pessoas. Esse levantamento, feito em 2015 pela ONG Oxfam, será apresentado nesta quarta-feira 20 no Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça. Paralelamente, acontece no Brasil, em Porto Alegre, uma edição comemorativa pelos 15 anos do Fórum Social Mundial (FSM), evento que reúne ativistas da esquerda e movimentos sociais e foi criado para fazer um contraponto a Davos.
Em entrevista a CartaCapital, o empresário Oded Grajew, um dos idealizadores do FSM, diz acreditar no poder da democracia participativa para impulsionar as pautas da esquerda, como o combate à concentração de renda. "As pessoas acreditavam que os seus representantes pudessem corresponder às expectativas. Por exemplo, na questão da eficiência do modelo econômico, na questão ética. O que caracteriza a esquerda, além da questão da ética, é a questão da igualdade. E, com esses indicadores, é um fracasso", diz.
Grajew cita ainda um levantamento recente que mostra que, no Brasil, o abismo entre ricos e pobres é maior do que se pensava. Com base em dados divulgados pela Receita Federal, o estudo dos economistas Adriano Pitoli, Camila Saito e Ernesto Guedes revela que 2,5 milhões de famílias da classe A são responsáveis por 37,4% do total da renda nacional – contra 16,7% apontado pela Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). Apesar das críticas ao governo da presidenta Dilma Rousseff, os diversos movimentos que participam do FSM deverão se manifestar contra o impeachment da petista.
Leia trechos da entrevista:
CartaCapital: O que mudou desde a primeira edição do Fórum Social Mundial, em 2001?
Oded Grajew: Naquela época, o neoliberalismo estava em seu auge. Era visto por alguns como o caminho que ia levar o mundo ao bem-estar, à felicidade geral e ao fim da desigualdade. O que mudou é que isso caiu por terra. Acho que ninguém está falando hoje que temos que deixar os mercados financeiros e os bancos agirem sem controle ou restrição. Nem o país mais capitalista do mundo, os Estados Unidos, deixa os mercados financeiros sem supervisão. Pelo contrário, de lá para cá uma série de regulações foram feitas, envolvendo todos os grandes países do mundo, para acabar com os paraísos fiscais, por exemplo.
CC: Qual o papel do FSM nesse novo cenário?
OG: Debater a democracia participativa. É papel da sociedade pressionar, fiscalizar, exigir, aumentar a transparência de governos, supervisionar, ter um olhar mais crítico e mais independente do governo. O Fórum sempre teve a discussão da democracia como um de seus eixos. Então, como é essa democracia? É apenas representativa? Você vai apenas eleger e pronto? Ou tem participação da sociedade?
Movimentos como o Podemos, o Cidadanos, mostram outra forma de participação no jogo político, a partir da sociedade civil. E toda essa discussão existe porque há hoje uma grande insatisfação com o modelo político, não só no Brasil, mas no mundo. Os políticos estão em cheque, com a credibilidade muito baixa, como se não representassem a maioria da população.
CC: O que deu errado?
OG: As pesquisas que têm saído mostram que a desigualdade no mundo não só é grande, mas é crescente. Democracia, governos, tudo isso foi feito para que nós tivéssemos sociedades menos desiguais, mais equilibradas, mais harmoniosas. E o que aconteceu? Nós temos o aumento da desigualdade no mundo, inclusive entre os países chamados democráticos.
A desigualdade já é grande, escandalosa. No meu ponto de vista, o aumento da desigualdade é o grande sintoma de que algo está errado. As políticas públicas nasceram com a ideia de que é importante que se tenha uma instância mediadora que vai colocar o interesse da maioria como prioridade e que possa ter ações e políticas para diminuir a desigualdade em seus países e no mundo.
CC: O que pode estar na raiz do aumento da desigualdade?
OG: Os governos estão mais a serviço de quem tem recursos, de quem financia suas campanhas, de quem tem o poder econômico, o que se traduz em poder político. 62 pessoas têm uma fortuna igual à metade da humanidade. Então eles têm mais poder que metade da humanidade, o que se traduz em políticas que os favorecem e que fazem crescer a desigualdade. É só olhar a agenda de qualquer presidente, qualquer governador, qualquer prefeito, com quem se reúne, com quem conversa, e as medidas.
CC: Isso explica, em parte, a crise da esquerda no Brasil e na América Latina?
OG: Sim, porque as pessoas acreditavam que os seus representantes pudessem corresponder às expectativas. Por exemplo, na questão da eficiência do modelo econômico, na questão da ética. O que caracteriza a esquerda, além da questão da ética, é a questão da igualdade. E, com esses indicadores, é um fracasso.
Quando o Fórum surgiu, a grande questão era “outro mundo é possível”, “outra América Latina é possível”, “outro Brasil é possível”. Desde então, muitos partidos e muitos candidatos ditos de esquerda assumiram o poder no Brasil, na Bolívia, no Equador, na Argentina. Mas hoje o que a gente vê é que muitos desses governos estão com grandes problemas. Mudou a crença de que basta você eleger governo, governantes e partidos políticos afinados com você para que as coisas se resolvam. É a questão da democracia participativa. E também há uma crise ética, com todos esses escândalos de corrupção. É uma crise grande, que nos obriga a repensar.
CC: O senhor acha que esses escândalos deram força à onda conservadora?
OG: Também. Na hora em que você assume o poder como um representante da esquerda, a sua responsabilidade é muito grande, no sentido de corresponder à expectativa e não dar margem para a uma onda conservadora e reacionária. Quando o Lula ganhou as eleições, perguntei a ele se ele tinha ideia da responsabilidade que é mostrar a esquerda no poder: ética, transparente, fazendo políticas para reduzir a desigualdade, tendo eficiência na economia. Hoje nós estamos no meio de uma crise política, econômica e ética.
O Lula foi ao Fórum Social Mundial de 2003, no primeiro ano do governo dele. Além de tudo que o Fórum implica, a ideia é fazer o evento na mesma época de Davos, para fazer com que as pessoas escolham onde querem estar. Ele disse que iria a Porto Alegre, mas que também iria a Davos. Eu fui contra e disse que ele precisava mostrar de que lado estava. Mas ele foi a Davos também. Então acho que todo o resto decorreu daí.

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