- Rivaldo Gomes/Folhapress
De 2003 a 2010, 25 milhões de brasileiros saíram do estado de pobreza. Mas, com a recessão que assola o país, a redução das desigualdades deixou de ser uma prioridade
Eugênia Oliveira possui a resignação daqueles que a vida nunca poupou, e está feliz porque não há ratos rondando seu barraco de madeira. "Graças a Deus". Eugênia tem 35 anos, seis filhos e em breve sete, vive em um dois cômodos de arquitetura tosca e perigosa em Paraisópolis, uma favela do sul de São Paulo, a megalópole brasileira. Uma cortina grudenta separa a cozinha de cerca de 4m² de um quarto de dormir pouco maior, onde se amontoa a família em meio à sujeira e à umidade, com a televisão ligada na Globo, a emissora mais popular do país. "No inverno a gente congela, no verão a gente cozinha", ela brinca.
Quando sua filha mais nova nasceu com um problema cerebral, Eugênia teve de deixar seu emprego de faxineira e a casa de alvenaria que ela ocupava em outra área da favela, por não poder pagar o aluguel exorbitante (R$ 300) que o proprietário lhe pedia. Ela se mantém com o Bolsa Família, oferecido pelo Estado aos mais miseráveis em troca da escolarização dos filhos, e está esperando por uma pensão para sua filha.
Nessa noite de janeiro, a água da chuva misturada ao esgoto escorre ao longo de uma rua lamacenta. O cheiro de urina se mistura ao do de fritura das cozinhas dos arredores, em meio ao barulho gerado pela proximidade entre as casas. A algumas centenas de metros dali, é possível ver os prédios luxuosos do Morumbi, abrigando apartamentos de milhões de reais, com piscina, varanda e sauna, onde trabalham como empregados domésticos alguns moradores dessa favela.
Com esses contrastes chocantes, prova das vertiginosas desigualdades, Paraisópolis confirma as estatísticas que mencionam uma distorção da distribuição de renda equivalente à do início do século 19 na França ou no Reino Unido, época dos "Miseráveis" de Victor Hugo e dos romances de Charles Dickens, como lembrou no dia 5 de janeiro a revista semanal brasileira "Carta Capital". Segundo a ONG Oxfam, 62 bilionários detêm uma riqueza equivalente à da metade da população mundial, ou seja, 3,6 bilhões de pessoas. Entre eles, há dois brasileiros: o empresário e ex-campeão de tênis Jorge Paulo Lemann e o banqueiro Joseph Safra.No Brasil, os dados não permitem medir as desigualdades de patrimônio, mas só a diferença de renda já dá uma ideia do problema: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o 1% dos mais ricos, em 2014, ganhava em média R$ 14.548 por mês, ante R$ 155,00 no caso dos 10% mais pobres. Quase cem vezes menos. "É bem alarmante", observa Marc Morgan Mila, aluno de Thomas Piketty, que está redigindo uma tese sobre as desigualdades brasileiras na Escola de Economia de Paris.
O temor de um retrocesso
Ele diz que o culpado disso é um sistema de tributação que, em certos sentidos, confere ao Brasil um aspecto de paraíso fiscal. As rendas obtidas dos dividendos das empresas e recebidas por pessoas físicas não são tributadas, a tributação do patrimônio é quase inexistente, a das heranças é leve e o imposto sobre a renda é pouco progressivo, com uma alíquota máxima de 27,5% (contra mais de 40% na França). A maior parte das receitas fiscais vem dos impostos indiretos cobrados do consumo como o ICMS, que ricos e pobres pagam de maneira idêntica e injusta. No final, um milionário paga proporcionalmente 25% a menos do que um trabalhador de classe média.
"Após a abolição da escravatura em 1888, o Brasil não teve uma verdadeira reforma agrária, e assim foram perpetuadas as desigualdades de renda que também são desigualdades de gênero e de raça", comenta André Calixtre, diretor de estudos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em Brasília. Os grandes proprietários fundiários, ex-colonos, brancos, transformaram sua fortuna agrária em patrimônio industrial, financeiro ou imobiliário, enquanto os descendentes de escravos se mantiveram na pobreza. Em 2014, um homem branco ganhava em média R$ 2.393,00, contra R$ 956,00 no caso de uma mulher negra, ressalta Calixtre.
No entanto, o Brasil, ex-astro dentre os países emergentes, no começo dos anos 2000 tomou o caminho do desenvolvimento que primeiramente beneficiou os mais pobres. Com a ajuda do boom do preço das matérias-primas e da política social do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), que ocupou o poder de 2003 a 2010, 25 milhões de brasileiros saíram da pobreza. De 2002 a 2014, o salário mínimo aumentou 77% em termos reais, ou seja, bem mais que a renda média (+40%). Entre 2004 e 2014, o índice de brasileiros que vivem em extrema pobreza, com menos de US$ 1 por dia (R$ 3,93), caiu para um terço, de 9,37% para 3,09%.
"A desigualdade diminuiu, mas não o suficiente", comenta Katia Maia, diretora da Oxfam Brasil. Para ir além, faltava a reforma fiscal que é o que se esperaria de um governo de esquerda. Pragmático, o ex-presidente tomou o cuidado de não assustar o "muro do dinheiro": "O Lula concentrou sua ação em ajudar os mais pobres, sem incomodar os mais ricos", resume Morgan Mila. Essa tática foi colocada em evidência por algumas pessoas desde que ele chegou ao poder em 2003, quando foi pela primeira vez à cúpula econômica de Davos, símbolo do capitalismo, e a seu contraponto, o Fórum Social de Porto Alegre.
Hoje, a recessão, a inflação de dois dígitos e o aumento do desemprego trazem os temores de um retrocesso. Em 2015, o país perdeu 1,5 milhão de empregos e a economia informal vem crescendo. Só que "o melhor programa social é o emprego", acredita Heloísa Oliveira, da fundação Abrinq, que visa proteger as crianças e os adolescentes. "A crise pode agravar a vulnerabilidade dos mais jovens", ela diz preocupada, lembrando que em 2010 19% das mães brasileiras tinham menos de 19 anos e que, no Nordeste, mais de um terço da população tem entre 0 e 18 anos e vive em favelas. Em certos Estados como o Acre, na Amazônia, o mais pobre do país, o coeficiente Gini, que mede as desigualdades, voltou a se agravar em 2015. Oliveira lamenta que não se tenha colocado mais ênfase na educação, pensando no futuro.
Mas não é mais tempo de gastar. A presidente Dilma Rousseff (PT), ameaçada de impeachment, desde 2014 parou de conduzir uma política social seguindo o modelo de seu antecessor, passando a adotar o rigor. Mesmo os sagrados gastos com o Carnaval, que será no início de fevereiro, foram revistos para baixo. Essa austeridade pode se revelar positiva caso Brasília reforme um Estado gastador e pouco eficiente, mas também negativa caso os cortes orçamentários sejam feitos de qualquer jeito e afetem os programas sociais, a ponto de comprometer a ambição do Brasil de fundar uma sociedade mais igualitária.